Conheça um pouco da história da especialidade por meio de seus atores. Confira no SBGG Entrevista de abril a experiência compartilhada pelo geriatra mineiro professor Ulisses Gabriel de Vasconcelos Cunha.
Referência em psiconeurogeriatria, professor Ulisses Cunha – como é conhecido – tem a prática da medicina no sangue. Filho e neto de médicos, sempre teve convicção de qual carreira seguiria. E, ao deparar com a geriatria e todo o universo que com ela lhe foi apresentado, não teve dúvida de qual vertente seguir.
Em pleno exercício profissional, ele atualmente coordena a Residência Médica em Geriatria do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de MG (IPSEMG) – hoje, uma das mais procuradas no País. Em seu currículo, acumula vínculos com importantes instituições, sendo membro pesquisador honorário em medicina geriátrica pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, e fellow pela Sociedade Americana de Geriatria. É autor dos livros Atlas of Geriatrics; Sinais e Sintomas em Geriatria, em sua terceira edição; e Geriatria – Casos Clínicos, que deve ser lançado ainda no primeiro semestre deste ano.
Embora detenha qualificações robustas, é no cenário das relações humanas que o Prof. Ulisses se destaca. Reconhecido pela habilidade em compartilhar seu conhecimento em geriatria e contribuir com a formação de novos especialistas, é tido por aqueles que o conhecem como um homem espontâneo e receptivo, que tem como uma de suas características mais marcantes o espírito de gratidão e simplicidade, aspectos que o tornam um cultivador de relacionamentos sólidos.
Confira a entrevista.
SBGG Entrevista: Como surgiu o interesse pela medicina?
Ulisses Cunha: Sempre tive convicção de que a medicina era minha vocação. A influência vem de família – de me avô e de meu pai.
Após minha residência em clínica médica e ter retornado da Inglaterra no início dos anos 1980, a geriatria ainda engatinhava acerca de seus conceitos básicos, particularmente a compreensão dos grandes problemas geriátricos.
Naquele momento, o Brasil e o mundo apresentavam outra realidade de envelhecimento populacional e não havia modelo de medicina geriátrica – até pelo perfil da população ser mais jovem.
Sempre tive interesse pela formação com um olhar mais generalista, integrado, do paciente – como é o caso da geriatria, em que lançamos um olhar multiprofissional e completo na assistência à saúde. Assim, seguir geriatria se tornou um caminho natural em minha carreira.
Vejo a geriatria como uma especialidade verdadeiramente instigante, em especial pela visão geral da medicina que ela possibilita: poder abordar a pessoa dentro de sua amplitude e não apenas centrado em determinados problemas clínicos e sociais, além de trabalhar com uma equipe multiprofissional certamente é algo único, que só aqueles que atuam fazem ideia da dimensão que nos traz como profissional e ser humano.
SBGG Entrevista: Quais foram as bases de sua formação em geriatria, tendo em vista o cenário de abordagem à especialidade ainda tímido no Brasil?
Ulisses Cunha: Como disse anteriormente, no início dos anos 1980 fui estudar na Inglaterra, onde tive contato com uma ampla e aprofundada abordagem da geriatria. Durante o tempo em que lá estive, pude ter acesso ao que se tornou a base de minha formação como médico geriatra.
Voltei ao Brasil e, já no Hospital Geral dos Servidores do Estado de Minas Gerais, pude estabelecer o Núcleo de Geriatria, então circunscrito à enfermaria, o que veio a se tornar anos depois a residência de geriatria credenciada. Isso ocorreu apenas em 1993, sendo a primeira residência credenciada no estado de Minas Gerais e uma das pioneiras no País.
Na Inglaterra, os pacientes muito idosos eram a verdadeira razão da medicina geriátrica, que tinha como foco abordar problemas médicos complexos e variados de pessoas idosas com diversas comorbidades.
Do ponto de vista mais técnico, as abordagens seguem regras diferentes de pacientes de outras faixas etárias. Os médicos incorporam aos poucos a atenção focada em idosos. Entretanto ainda observamos no Brasil um desconhecimento da essência da geriatria pelos médicos em geral. Isso se deve, especialmente, ao fato de os conceitos básicos de geriatra serem pouco abordados na própria grade de graduação em medicina.
SBGG Entrevista: E quanto à neuropsicogeriatria?
Ulisses Cunha: Minha linha de atuação e pesquisa tem foco nessa vertente, um pedaço desafiador da geriatria, por estar em constante evolução em termos de desenvolvimento científico. Ainda há muito a se desvendar, mas sem dúvida avançamos no entendimento de doenças correlacionadas à neuropsicogeriatria. Espero que haja mais profissionais da saúde interessados em explorar esse campo.
SBGG Entrevista: Quais desafios ainda precisam ser vencidos para aperfeiçoar o acesso ao conhecimento nesse campo?
Ulisses Cunha: Considero dois pontos fortes:
- É preciso haver sensibilidade em colocar a cadeira de geriatria nas faculdades de medicina do País;
- Divulgar a especialidade amplamente. Vejo que a SBGG tem trabalhado arduamente nesse sentido – trata-se de uma meta complexa e ambiciosa, que é contínua e tem papel decisivo na ampliação e fortalecimento da especialidade no País.
Destaco também que há muito a ser vencido em termos de preconceitos relativos ao idoso no Brasil.
SBGG Entrevista: Por fim, como o senhor avalia o papel do professor como propagador da geriatria, seja na graduação, seja na formação como especialista?
Ulisses Cunha: Ensinar é recompensador para mim. Faço com grande orgulho e satisfação. Passar o conhecimento e conceitos básicos a pessoas sem familiaridade com a geriatria e ver seus horizontes se abrirem frente às perspectivas de atuação junto à assistência ao idoso é algo estimulante.
Hoje, quando os médicos fazem estágios em nossas enfermarias, geralmente perdem o preconceito de tratar idosos. Eles podem vivenciar que, na realidade, não se trata somente de um conjunto de doenças, mas de qualidade de vida.
Estratégias preventivas são muito bem-vindas e podem resultar positivamente em uma vida com qualidade. Entretanto, a variável idade é uma verdade que não pode ser combatida, pois o processo de envelhecimento faz parte da vida. E assim ele deve ser visto, como algo natural, inerente ao ser humano. Sem dúvida, aqueles com idade próxima aos 90 anos vão ter doenças características ao seu tempo de vida.
Como geriatras, temos de assumir nosso papel de incentivadores, de multiplicadores de informações a esses novos médicos – sejam eles aspirantes à geriatria, sejam aqueles que seguirão em outras áreas. Fundamental é ampliar o conhecimento frente às necessidades assistenciais à saúde do idoso.
Drops
Geriatria é: praticamente tudo em minha vida.
Envelhecimento ativo: tenho uma vida ativa e procuro fazer minhas tarefas com qualidade. Pratico caratê regularmente desde os 15 anos de idade, não fumo e sigo uma dieta saudável.
Um sonho: a geriatria ser introduzida na grade de todas as escolas de medicina no Brasil.
Uma mensagem ao futuro médico (geriatra ou não): que o futuro médico tenha conhecimento de conceitos básicos de geriatria, para que seja capacitado a compreender e assistir as pessoas idosas. Sem dúvida, é um grande desafio, mas espero viver para ver isso tornar-se realidade um dia.
Prof. Ulisses por Dr. Rômulo Meira (atual presidente da SBGG-BA)
“Tive a oportunidade de conhecer o Prof. Ulisses no início de sua carreira. O primeiro encontro foi em Lima, no Peru, por volta de 1982 – 83. Naquele período, ele já apresentava trabalhos originais, sendo sua contribuição constante no meio. Professor Ulisses sempre se manteve na vanguarda da pesquisa em geriatria. Sua experiência de vida e, na prática, como professor e na clínica, sem dúvida marcaram a história da geriatria.
Juntos, eu e Ulisses, na companhia de outros colegas – Fabio Lopes Rocha (MG), Heber Soares Vargas (PR) e Renato Maia Guimarães (DF) –, fundamos em 1992 a então chamada Associação Brasileira de Psicogeriatria – hoje denominada Neuropsicogeriatria.
Como um exemplo que expressa bem as atitudes do Prof. Ulisses com aqueles com quem convive, cito a proximidade e amizade entre ele e o professor Jorge Patrock (in memoriam), uma figura que acredito ter inspirado muito o Prof. Ulisses. Mestre em psiquiatria mineira, ele sempre militou pelo ensino dos não especialistas e especialistas, contribuindo ricamente para a psicogeriatria. Foi um incentivador, agregador – um homem que valorava as relações humanas, assim como o Prof. Ulisses.